Iniciar a vida escolar traz muitas vezes
insegurança aos pais de crianças com diabetes. É inegável que existem motivos
para isso. Além de ser a primeira vez que a criança estará por muitas horas
fora de casa, longe dos cuidados dos pais, as escolas e professores nem sempre
estão adequadamente preparados para recebê-los. Por esse motivo, entrevistamos
a engenheira química e ambiental, Ana Claudia Cendofanti, mãe da Sophia, de 3
anos e da Sarah, de quase 6 anos de idade e diabetes desde 2 anos e 11 meses de
idade (diagnóstico em 2009). Escolhemos entrevistar a Ana Claudia pelo motivo
de o início da Sarah na escola ser relativamente recente e, em especial, por
ter sido bem sucedido.
Sarah Cendofanti e sua professora, Camila Guernieri |
- Ana, conte-nos um pouco como e quando vocês
decidiram que era hora de iniciar a vida escolar da Sarah.
A Sarah não ia à escola, pois meu trabalho permite
ficar com ela pela manhã e a tarde ela ficava com uma babá. Porém ela começou
(aos 3 anos e meio) a ter depressão, quando enfim ela verbalizou que achava que
não podia ir a escola por ter diabetes. Na época ela fazia natação e via os
amigos voltando da escola. Explicamos que o diabetes não a impede de fazer nada e iniciamos a busca por uma escola. Na época as glicemias estavam na
faixa de 300 mg/dl a 450 mg/dl, mesmo
aplicando insulina. Quando decidimos a escola e a avisamos, as glicemias do
nada voltaram a baixar. Assim, ela começou na escola com 3 anos e meio de
idade.
- E o que vocês consideraram quando foram
procurar uma escola para ela?
A escolha foi baseada em duas coisas:
o método de ensino e o acolhimento a uma criança com diabetes. Fomos conhecer
sete escolas, dessas seis estavam receptivas a fazer o teste de glicemia capilar e atender as necessidades dela. Então, diante das opções começamos a
focar em qualidade de ensino. A escola que escolhemos ensina de forma lúdica,
tem muita área verde (bosque, mini-zoológico, salas em meio ao bosque). Além
disso, está localizada há 500 metros de minha casa (as demais eram no máximo 1
km de nossa casa).
- E como vocês faziam? Ao conhecer a escola
perguntavam se já tinham tido algum aluno com diabetes? Se estavam dispostos a
fazer glicemia capilar, aplicar insulina, receber treinamento sobre diabetes?
Primeiro conhecíamos a escola e seu projeto
pedagógico. Depois abordávamos a questão da diabetes e da abertura da escola para tratar disso de forma individualizada e não estereotipada e com
preconceitos. Das seis escolas que gostamos inicialmente, cinco já tinham alunos
com diabetes. Porém cada uma tratava a questão de forma diferente. Nas duas escolas
que mais gostamos a professora faria o teste de glicemia e eu teria livre
acesso sempre que precisasse ir a escola. Em outras duas toda a vez que ela
precisasse fazer o testes deveria sair da sala, atravessar a escola e o
enfermeiro iria fazer. Na quinta escola era muito solta a forma com que lidavam
com a situação.
Eu e meu marido achamos que o fato de ter uma enfermeira não ajudaria, afinal teria que retirá-la da sala e daria a sensação de doente esse tipo de tratamento. Por isso ficamos em dúvida entre as duas primeiras.
Então, agendamos uma conversa com a equipe da escola (psicóloga, diretora
e coordenadora pedagógica), antes de tomar a decisão, o que tornou mais fácil a
decisão. Trata-se de uma escola familiar que tem 400 alunos de educação
infantil até o 5◦ ano. Na época já tinham duas meninas com diabetes. Inclusive
uma das meninas teve os sintomas, que levaram ao diagnóstico, reconhecidos pelo
pessoal da escola.
- O knowhow da escola contou então?
Sim, contou muito. O que mais levamos
em consideração foi a naturalidade que a escola nos acolheu, a facilidade de
acesso que teríamos a Sarah e a boa vontade de serem treinados. Para nós era
muito importante que a professora fizesse o teste e não tivesse insegurança excesso no lidar com ela. Somos contra os excessos e o tratar nossa filha como
doente. Ela tem uma disfunção. Se tiver hipo deve comer, se tiver hiper deve
tomar insulina. Sem nervosismo, sem neuras.
- Então antes de iniciar as aulas, alguma
medida foi tomada por vocês e pela escola para garantir que tudo estaria
adequado a ela?
Sim, treinamos a professora e eu fui
praticamente todos os dias nas primeiras duas semanas de aula para ensinar e
acompanhar os testes de glicemia. O treinamento consistiu principalmente em:
- · O que é diabetes tipo 1 e porque da necessidade de medir a glicemia e tomar insulina;
- · Importância de tomar insulina adequada na hora das refeições (contagem de carboidratos);
- · Aprender a fazer o teste de glicemia e interpretar os resultados (fiz o teste em mim e a professora pediu para fazer nela para saber como era);
- · O que é e o que fazer em casos de hipoglicemias e de hiperglicemias;
- · Importância de uma dieta equilibrada e saudável, assim como a prática de atividade física (salientei que ela não tinha proibições de atividade física e poderia , por exemplo, comer um brigadeiro e salgadinhos na festa de aniversário, porém nós iríamos aplicar a insulina para cobrir esse carboidrato e não prejudicar o controle glicêmico).
- · Eu e a outra mãe deixamos um glucagon na geladeira da escola para eventual necessidade.
Além disso, deixo na escola uma bolsinha como:
glicosímetro, saches de glicose e de mel, barra de banana natural, tiras
reagentes extra, lancetas, saches de álcool e sempre mantenho um estoque de
suco de maçã em caixinha e água de coco para tratar hipos.
- Como foi no início na escola? Quais foram os
principais desafios e como eles foram superados?
No começo vimos que apesar da escola
ter 2 alunos com diabetes, não estava tão afiada para lidar com as variações
glicêmicas (hipos e hipers). Mas eles não tinham problema em admitir e queriam
aprender. Os principais desafios foram: reconhecer sinais e sintomas de hipo
(pois minha filha é assintomática), tratar com calma uma hipo. Hipoglicemia era
um tabu, e pela escola ter participado
do início do diagnóstico de outra aluna tinha inseguranças. A Sarah tinha hipos
de 20 - 30 mg/dl praticamente toda a semana e a professora tratava, media novamente e me ligava para relatar. Por isso fui 2 semanas no início, aconteceu de ter
hipo e tratei com calma.
Por vezes acontece algo inesperado, porém dou as
coordenadas por telefone e a professora resolve a situação. Este ano, no início
do treinamento da professora ocorreu algo que, pela primeira vez, me deixou
preocupada. A Sarah estava com 52 de glicemia e a professora me ligou, pois era
a hora do lanche e ela não estava conseguindo dar insulina (a bomba de insulina
não liberava). Eu expliquei que por causa da hipo ela deveria tratar com o suco
e depois medir novamente. Aí sim aplicaria a bolus de insulina. Mas a Sarah
entendeu que a professora não sabia fazer e resolveu aplicar ela mesmo pela
bomba. Ou seja, eram 48 g de carboidrato (1,8 unidades de insulina de acordo
com a necessidade dela). Ela colocou 4,8 unidades de insulina na bomba e
aplicou. Nunca tinha feito isso. Sabe que não pode dar insulina sem a
supervisão de um adulto. Eu calculei a quantidade de carboidrato que ela
precisaria ingerir e falei a professora o que fazer e me dirigi a escola. Quando
cheguei lá a professora dizia que ela estava com sono. E eu expliquei, que não
era só isso, ela estava desmaiando por causa da hipo. Fiz a correção e ela
melhorou. A professora aprendeu e ficou expert em entender e tratar.
Pensei que ela ficaria insegura, mas
não ficou. Acho que em parte porque não cheguei reclamando, cheguei para agir
e fui objetiva. Não sou de me desesperar e descontrolar. A professora tem uma
tabela que ensina o que dar dependendo da faixa de glicemia. Um tipo de cola,
para saber o que fazer, chegou a decorar de tanto que usou. Brigar nessas horas
aumenta a hostilidade e cria insegurança. E quero uma professora e uma escola
que lidem de forma objetiva e sem medos, afinal é minha filha.
A maior parte das escolas não sabe como agir,
acredito que o diálogo e o treinamento é a melhor solução sempre. Quando
falamos em treinamento estou falando de esclarecer de forma informal o que é
diabetes e os cuidados que devem ser tomados, afinal os pais conhecem melhor
como explicar isso a escola. As escolas, na maior parte, não estão preparadas e
não devemos reclamar disso e sim prepará-las.
- E será que as outras mães e professoras
puderam aprender um pouco com o exemplo de vocês?
Com certeza, a diretora chegou a mudar
a postura , deu mais segurança a ela para lidar com o diabetes e derrubar mitos
que existiam. As mães dos amiguinhos da Sarinha nos vêem como exemplo e acham a
Sarah muito disciplinada e tranquila para lidar com as variações glicêmicas.
A Sarah que explicava aos amigos:
"O meu corpo tem uma disfunção, parou de funcionar. Não fabrica insulina e
por isso eu tenho que tomar, para ter saúde. Eu não tomo remédio, tomo
insulina. E ficarei doente se não tomar." Os pais ficavam admirados que
seus filhos sabiam o que era diabetes tipo 1 e quem explicava era a Sarah.
Foi desafiador os pais e mães das
outras crianças que achavam que não era bem assim. Que ela nunca poderia comer
doce. Falavam a seus filhos que ela era doente e por isso tomava remédio. Porém
os amigos a defendiam e diziam que não era bem assim. Nas festas fora da
escola, os pais perguntavam para nós. Não a convidavam para passar o dia na
casa deles, pois teriam que fazer o teste. Parecia que a Sarah era uma bomba
relógio que poderia explodir na mão deles se ficasse sozinha sem eu ou meu
marido para monitorar. A maior descriminação foi dos pais dos amigos. Por isso
treinei a Sarah desde cedo a fazer o teste, dei um celular a ela e ensinei-a a
tratar as hipos. As amigas verdadeiras foram a chamando para passar o dia em
sua casa e esses mitos caíram por terra, somos agradecidas a essas mães.
- Pelo que entendi é a professora quem da toda a assistência a ela. Ou
melhor, quando não é ela mesma.
Antes da bomba de insulina era, hoje em dia a
Sarinha faz o teste sozinha e coloca a quantidade de carboidrato, a bomba faz o
cálculo. Então, mostra à professora, para que ela cheque se está certo, e
aplica. Isso começou há cerca de 4 meses, quando ela começou a ler bem e
escrever também. Ela é meio precoce na turma, é a mais nova e a mais avançada
na leitura e escrita. Até 4 meses atrás a professora é quem aplicava a insulina. Porém a professora sabe avaliar as hipos da Sarah só de olhar, e
quando dá alterada a glicemia sabe que deve lavar melhor as mãos dela para ter
certeza antes de aplicar a correção.
- Há alguma dica que você gostaria de deixar
para pais e para professores de crianças pequenas com diabetes?
Acho que uma criança diabetes lida com seu diabetes da forma com que você lida. Se os pais não aceitam e o tratam com
dó e pena, assim ela se sentirá. Se os pais lidam com o diabetes de forma a incorporar os novos hábitos no dia a dia, tornarão seus filhos mais seguros e com a mesma percepção. A criança tem a
capacidade de aprender e a lidar com essas mudanças de hábitos de uma forma
mais tranquila do que um adulto, não devemos menosprezar a capacidade de
adaptação e entendimento de uma criança. Minha filha tem diabetes e o diabetes
é uma parte dela. Uma parte que deve ser respeitada, mas nunca deve
comandar a vida dela. E devemos encarar o diabetes como um hábito a ser
incorporado e não um grande problema diário. Se encaramos como problema os
outros assim o farão.
DEPOIMENTO PROFESSORA CAMILA GUERNIERI
“Ser educadora é um desafio constante.
Cada criança representa uma grande responsabilidade e uma enorme possibilidade
de crescimento profissional e humano. Entrelaçamos nossas vidas e
compartilhamos muitas alegrias, algumas dificuldades e ultrapassamos milhares
de obstáculos. No início deste ano, na minha turma de 1 ano, entre os 15 alunos
que recebi, a Sarah com certeza ocupa um lugar especial, pois entre exames de
glicemia que fazemos duas vezes durante toda
a tarde rolam alegres conversas sobre mil coisas interessantes. Agradeço
a confiança que a sua família deposita em mim e desejo que a minha querida
Sarah desenvolva sempre seu grande potencial intelectual e emocional ao longo
de sua vida. Sarah você é muito especial e fazer parte de sua história faz a
minha história muito mais rica de experiências positivas".
Muito obrigada por esse post! Tenho uma filha de 4 anos, diabética desde 04/01 desse ano!no próximo ano, ela irá para a escola e esse é um grande medo meu.....será que saberão agir numa possível hipo ? Como tratarão a questão diante das outras crianças? Enfim, vários aspectos me atormentam, mas foi muito bom ler esse conteúdo
ResponderExcluirAbs
Muito útil e esclarecedor esse post! Meu pequeno tem 1 ano e sofro quando penso na escola! Obrigada pelo relato!
ResponderExcluir